Sobre o Recurso Extraordinário 603.136, de 29 de maio de 2020, que declarou constitucional a incidência de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (“ISS”) para os contratos de franquia (franchising), o acórdão teve como Relator o Ministro Gilmar Mendes, que, nas fundamentações da constitucionalidade dos itens 10.04 e 17.08 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003 (“Anexo da LC 116/03”), buscou esclarecer a delimitação do conceito de serviço e a compreensão do contrato de franquia, para, por fim, propor a seguinte repercussão geral:
“É constitucional a incidência de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre contratos de franquia (franchising) (itens 10.04 e 17.08 da lista de serviços prevista no Anexo da Lei Complementar 116/2003).”.
Para iniciar a discussão a respeito do tema, há de se trazer a competência tributária dos municípios para instituir impostos sobre serviços:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.”.
O Relator inicia a explicação do conceito constitucional fazendo menção à necessidade do legislador complementar definir, em termos práticos, o que se deve ter por “serviços de qualquer natureza”, uma vez que a Carta Magna não se incumbiu de tal função.
Isto posto, o papel do legislador complementar não é criar um conceito de serviço, mas sim, elencar quais os são. É o que foi entendido, de forma similar, pelo outrora Ministro Eros Grau no julgamento do RE 592.905: “A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição”.
O desafio posto nesta questão, e daí a grande discussão, é que a franquia se constitui como um negócio de diversas prestações. Embora uma das principais seja a cessão do uso da marca da franqueadora, a lógica por traz do instituto é mais complexa e está relacionada com o desenvolvimento de um padrão capaz de transmitir para o consumidor o conforto e a confiança de estar diante de uma marca com renome e de confiança, enquanto pelo lado do franqueado, o benefício de explorar a atividade comercial em determinado mercado com orientação de empresa já experiente e (por vezes) consolidada no meio. Vai além da simples cessão da marca.
Atualmente, grande parte dos franqueados possuem entre 26 e 35 anos. Além disto, geralmente, são jovens que tem vontade de ter um negócio próprio, mas não possuem know-how na área de atuação da franquia. Celebram o referido contrato com o intuito de exteriorizar o projeto empreendedor, somado ao aprendizado obtido na gestão de um modelo de negócios já validado.
Portanto, o negócio jurídico em si, em hipótese alguma, deve se confundir apenas com as atividades descritas no art. 1º da Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019 (“Lei de Franquias”), entendidas isoladamente. O objeto da franquia é o direito à exploração de atividade comercial, balizado nos conhecimentos empíricos e técnicos do franqueador passados ao franqueado através de treinamentos, manuais, orientações periódicas, esclarecimento de dúvidas, emissão de relatórios, palestras etc.
Tal definição não exclui o fato de que cada modelo de franquia possui uma forma de disponibilizar o know-how para o franqueado e rentabilizar a franqueadora. Algumas dão direito a distribuição de produtos e realizam o treinamento de equipes, outras preferem por delegar o treinamento para empresas contratadas com esta única função. Há também aquelas que disponibilizam todos os materiais necessários para a implementação da unidade franqueada, enquanto outras que possuem parceria com escritórios que realizam este serviço.
Enfim, diversas são as formas de desenvolver um sistema de franquia e a pergunta finalística sobre a questão da incidência do ISS para toda a atividade da franquia empresarial é: Ao elencar a atividade de franquia no item 17.08 no Anexo da LC 116/03 o legislador complementar considerou toda a gama de serviços realizados ou apenas entendeu aqueles considerados básicos e praticados à época da legislação (ano de 2003)?
Continuando no RE 603.136, o Relator discorre sobre o caráter híbrido deste contrato empresarial, tal qual trazido pelos nossos comentários acima, buscando leading cases para chegar à decisão da constitucionalidade dos itens relacionados à franquia constantes no Anexo da LC 116/03. Dentre os casos mais comparáveis, teceremos comentários sobre a locação de bens móveis (RE 116.121, Rel. Min. Octavio Gallotti, redator para o acórdão Ministro Marco Aurélio, DJ 25.5.2001) e as atividades realizadas pelos planos de saúde (RE 651.703, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 26.4.2017).
Quanto à locação de bens móveis, foi determinada a inconstitucionalidade da incidência de ISS por se tratar de obrigação de dar, não de fazer, como se presume que seja nas prestações de serviços.
Para o caso das atividades realizadas pelos planos de saúde, por outro lado, o entendimento não seguiu a interpretação civilista, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal entendeu que não era mais apropriada a terminologia do Código Civil para distinguir cada atividade econômica como ou de dar ou de fazer, sendo aplicado ao caso um sentido mais amplo às atividades mista, isto é, àquelas compostas por obrigações tanto de dar, quanto de fazer.
O referido entendimento das atividades mistas foi aplicado à compreensão do contrato de franquia.
Para continuar a distinção entre as prestações do contrato de franquia, o Relator determinou que o instrumento contratual possui atividades meio (treinamento, orientações, publicidade etc.) e atividades fim (cessão do uso da marca) e justificou que há duas razões que justificam a não separação das atividades para fins fiscais.
A primeira delas é que o contrato de franquia é híbrido e composto por um complexo de obrigações.
A segunda, que caso o entendimento fosse este, o contribuinte buscaria maneiras de dividir e organizar o que seriam atividades meio e atividades fins tendo em vista o potencial ganho tributário em uma reorganização proposta por este pilar.
Sendo assim, atualmente, é constitucional a incidência de ISS sobre os contratos de franquia.